democracia: enxergo-me ou devoram-me.
- flp ksntzk
- Apr 22, 2022
- 7 min read

botton da campanha #2022voteemmulheres do #mapadasmina
onde está a representatividade na política brasileira?
a noção moderna de democracia liberal surge e se desenvolve pelos séculos XIX e XX, sendo a “democracia representativa” uma das formas pelas quais o “governo do povo” pode ser gerido. em nossa constituição federal de 1988, no parágrafo único de seu primeiro artigo, temos a reafirmação desta democracia específica em nosso país, no que diz: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição”.
mas, nos dias de hoje, como enxergar-se dentro de um sistema onde tudo é feito para repelir a classe trabalhadora pobre, que é a maior parte de nossa população? como vencer os mecanismos anti-povo presentes nesta democracia — seja pela linguagem, o acesso, ou até mesmo pelas regras do jogo político, onde muitos se veem participantes apenas a cada dois anos, durante as eleições?
claro que antes mesmo de chegarmos até estas discussões, mais centradas nos mecanismos da política institucional que afastam seus cidadãos, precisamos ainda refletir algo anterior a isso: entende-se que para enxergar-se na política é necessário, inicialmente, enxerga-se enquanto sujeito político — dotado de direitos já existentes ou por vir — e ser enxergado por toda a sociedade como tal. a negação de direitos básicos age então, nesse sentido, não só como a ferramenta desumanizadora principal para as demais classes enxergarem a classe trabalhadora pobre enquanto cidadãos de segunda classe, como também ajuda a gerar, em grande parte desta própria classe trabalhadora pobre, uma visão distorcida sobre si e seus direitos. e uma vez não enxergada e não se vendo a população, assim, pode ser devorada. é importante começarmos a entender os calos da democracia representativa por aí, uma vez que as favelas e periferias, onde reside grande parte dessa classe trabalhadora pobre e majoritariamente negra, muitas vezes não pode nem se dar ao luxo de pensar sobre sua representação na política, porque a elas e eles já foi negada a sua representatividade na sociedade como um todo — sendo a política institucional só mais um dos tantos espelhos onde ela não se reflete. assim, no dia a dia, o estado se faz presente pela coerção e pelo medo, através da força de seus agentes de segurança, mas também se faz presente pela falta (seja de saúde, de educação, de saneamento básico ou assistência social). para se ter o direito de pensar em política, o sujeito histórico precisa ter primeiro o direito de estar vivo. tendo o direito de viver, é preciso de educação para que ele enxergue a política acontecendo ali na sua frente, em todas as suas ações e relações cotidianas. só assim, nós da classe trabalhadora, podemos partir para um entendimento das redes e conexões que formam a política institucional — esta também com suas próprias (e muitas) falhas que impedem a representatividade mais uma vez, como veremos mais a frente. tudo isso é importante ser analisado para começarmos a entender o crescente número de abstenções de votantes, ano após ano, nas últimas eleições e, também, como se formam currais eleitorais — movidos por dinheiro, assistencialismo, forças de segurança paralelas, ou os três — que pouco levam às casas legislativas uma representação efetiva da sociedade. Não podemos também, sequer, ter a ilusão de que podemos ou devemos analisar as formas diretas de democracia previstas em nossa constituição (plebiscitos, referendos, etc…), uma vez que a maioria da população as desconhecem. assim, dia após dia, a democracia para muitos brasileiros e brasileiras segue existindo cada vez menos. porém, ainda assim, uma certa intenção de democracia e suas regras de estrutura existem. logo, sob determinadas luzes, podemos dizer que a democracia, então, existe em nosso país. em existindo, existem partidos — os mecanismos fundamentais para o agrupamento das opiniões diversas da sociedade, sem os quais não há democracia representativa. estes, portanto, poderiam ser a primeira evidência concreta de que existe alguma espécie de mecanismo de representação da sociedade em curso no brasil. seguindo as regras da política institucional, estes partidos apresentam seus candidatos ao pleito e a partir daí podemos observar mais alguns gargalos que impossibilitam a efetiva democracia representativa. pegando como exemplo o legislativo federal, para apresentar um panorama do país, temos apenas 17,8% de parlamentares negros (pretos e pardos, segundo a definição do IBGE) — 106 das 594 cadeiras da câmara e do senado juntas. se analisarmos todos os 1790 políticos autodeclarados pretos e pretas no pleito de 2018, esta representatividade cai ainda mais. eles e elas somam apenas 4,3% de todos os eleitos e eleitas para cargos nos poderes executivo e legislativo nas esferas estadual, distrital e nacional. levando-se em consideração que, somados, pessoas pretas e pardas representam 55,8% dos brasileiros, começamos a entender o abismo no qual nos encontramos. a representatividade feminina em todas as esferas políticas também é irrisória se comparada ao percentual de mulheres na nossa sociedade. nas duas casas legislativas federais temos apenas 15% de mulheres, enquanto na sociedade as mulheres constituem 51,7%. entre 193 países elencados em um ranking mundial da representatividade feminina nos parlamentos, o brasil ocupa o 154º lugar. isto posto, ainda sim, não significa dizer que estas e estes representantes que lá estão se demonstram defensores dos direitos das mulheres ou dos negros no brasil, única e exclusivamente por suas características biológicas. bem como, obviamente, esta não é apenas uma questão de representatividade estatística, mas ajuda a romper o véu e entender a falta de efetividade na criação de leis e demais dispositivos que assegurem, inclusive, a reparação de algumas das desigualdades históricas brasileiras. desigualdades estas, às quais nos referíamos no início deste artigo, e que, sem as mesmas, inclusive, não seremos capazes de avançar rumo a uma verdadeira democracia representativa para os nossos cidadãos e cidadãs. mas então, a quem serve a estrutura política da forma que ela se encontra hoje e quais seriam os entraves impostos para que não existam na política mais mulheres, pessoas negras, indígenas, pessoas com deficiência e tantas outras parcelas que compõe a sociedade brasileira? a esta pergunta várias análises se fazem necessárias, inclusive análises estruturais sobre a formação da sociedade patriarcal e racista na qual vivemos. por muitos anos, mulheres e pessoas negras não tiveram diversos direitos, dentre eles o de votar e serem votados, enquanto homens brancos sempre tiveram livre acesso a estes lugares de poder. somente há menos de 100 anos atrás, em 1934, mulheres, negros, pobres e analfabetos passaram a ter direito ao voto. e, é claro, todos os demais direitos não vem ao reboque apenas pelo simples fato de poderem votar. muitas lutas de movimentos sociais organizados foram necessárias para que os direitos adquiridos hoje tenham sido alcançados e muitas outras ainda precisam ser travadas, inclusive no campo político institucional. hoje temos, por exemplo, algumas leis de cotas mínimas para candidatas mulheres, mas elas não são suficientes para combater anos de desigualdade. além de serem historicamente afastadas por muitos e muitos anos da esfera pública e relegadas ao campo doméstico, (portanto, ainda mais afastadas das discussões do meio político institucional, o que até hoje ainda as afasta infinitamente dos quadros eleitorais), não há o esforço da maioria dos partidos em trabalhar para aproximar as mulheres da política institucional — seja com formações continuadas, programas de aceleração de lideranças locais, a própria busca ativa por mulheres para compor seus quadros paritariamente, entre outras alternativas. um bom exemplo desta falta de interesse por parte dos partidos é não existir até hoje, em todos os partidos dos mais diferentes espectros políticos-ideológicos ou fisiológicos, nenhum partido que tivesse pelo menos 50% de mulheres em seus quadros eleitorais. a lei é evidente: para haver o mínimo de “igualdade” entre gêneros, é necessário o mínimo de 30% de candidatas mulheres para 70% de candidatos homens ou ao contrário — o que nunca chegou nem próximo de existir. Cria-se, assim, uma completamente falsa sensação de que não existiriam mulheres capazes de compor os 30% das candidaturas de cada partido. e, assim, somando-se à má fiscalização durante e após as eleições e à falta de sanções mais duras aos partidos que promovem candidatas-laranja, temos mais um gargalo para a sub-representação das mulheres nas casas legislativas. ainda àquelas que conseguem romper o teto de vidro, se fazem presentes em suas trajetórias, a misoginia, a falta de financiamento e apoio às suas campanhas (em detrimento de campanhas de seus pares homens), a dupla ou tripla jornada em épocas de campanha e a solidão da mulher na política. às eleitas, muitas ameaças de morte ou a própria execução de fato. existem, é claro, iniciativas populares e campanhas para fortalecer candidaturas de mulheres (que lutam pelos direitos das mulheres), mas muitas delas ainda não encontram a força necessária para romper sozinhas um sistema tão bem arquitetado para impedir a participação das mulheres na política. entende-se necessário, é claro, que haja o clamor e a mobilização populares para que haja uma maior representatividade da nossa população como um todo em nossa democracia. porém, por conta de um grande processo de despolitização da sociedade brasileira, que atende à agenda neoliberal e à retirada de direitos, a população por si só não tem condição de ter sequer tempo para parar e pensar sobre isso, pois, em tese, isso não diz respeito à sua agenda diária de luta por sua própria sobrevivência. cabe, portanto, à sociedade civil articulada, os partidos (e seus e suas parlamentares) olhar mais atentamente à política institucional, trazendo estratégias e soluções a fim de começar a reverter este quadro convalescente da democracia. obviamente, muito mudou de 1934 até hoje, mas estamos muito longe de uma democracia satisfatória para a maior parte de nossa população. iniciativas voltadas mais às cotas por cadeiras e não por candidaturas ou ainda as listas alternadas fechadas podem apontar uma nova direção. porém, estas medidas precisam ser coordenadas com a retomada de direitos para os cidadãos brasileiros que, desde 2016 vem tendo cada vez mais seu acesso à cidadania negado, depois de um período de expansão democrática, bem como uma crescente educação política (ou re-politização) da classe trabalhadora, para não representarem mais um tiro no pé. é preciso, portanto, lutar para trazer à sociedade brasileira um novo sentido para o que entendem como “a política”. e este caminho não será possível sem a conquista de direitos pela maior parte da nossa população. uma democracia não se faz sem povo. e, para isso, o povo precisa estar vivo.
artigo de opinião escrito para a maestría estado, gobierno y políticas pública da flacso brasil.
felipe kusnitzki é coordenador de comunicação e marketing / de projetos na ong luta pela paz, co-fundador do #mapadasmina e profissional do audiovisual.
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