roteiro de curta-metragem: fuga nº 2
- flp ksntzk
- Apr 22, 2022
- 7 min read
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EXT. PONTO DE ÔNIBUS — ENTARDECER
IVONE (75) e PAULO (77) de óculos escuros sentados em um ponto de ônibus vazio. A rua está completamente vazia. Atrás do ponto, uma grande muralha de pedra. Poderia ser Santa Teresa. Os dois olham para a frente sem manter contato visual. Ivone tem os cabelos curtos e por pintar de castanho claro. Um casaco vermelho ao avesso.
Todos os créditos do filme ocorrem durante esta espera.
IVONE
E agora, a gente vai pra onde?
EXT. ASILO JARDIM — DIA
Banho de sol. Paulo com os mesmos óculos. Ivone sem óculos e com os cabelos mais longos e ainda pintados de preto com poucas raízes brancas.
PAULO
Então, pra onde você quer ir?
INT. CASA DE IVONE/CLOSET — DIA
Ivone sentada em frente ao espelho dentro de seu closet parece estar usando todos os seus colares enquanto passa um batom vermelho. Tem os cabelos longos e soltos, pintados de preto bem escuro. Seu filho, ANDRÉ, bate à porta trancada.
ANDRÉ (v.o.)
Mamãe… Alguma hora cê vai ter que sair, seja por bem, seja por mal.
A senhora não vai poder ficar aí pra sempre. Vai ser melhor pra você.
INSERT: gravuras da enseada de Copacabana e demais imagens do Rio de Janeiro antigo.
ANDRÉ (v.o.)
Our history begins a little bit earlier, but we’ll start at 1565.
Rio de Janeiro City foundation, March, 1st 1565.
INT. ASILO CONSULTÓRIO — DIA
Em uma folha de prontuário lemos “ANAMNESE”.
MÉDICA (v.o.)
Seu Paulo, quantos anos o senhor tem?
Uma foto 3x4 de PAULO , seu nome completo e idade.
PAULO (v.o.)
770.
As mãos negras da médica marcam um “x” ao lado do campo referente à idade. Paulo de óculos escuros.
MÉDICA(v.o.)
Tá certo, seu Paulo… Como é que você veio pra cá hoje?
Paulo titubeia.
PAULO
Não sei.
INT. ASILO CONSULTÓRIO — CONTÍNUO
A médica anota algo no papel balançando a cabeça.
MÉDICA
Bom dia, Dona Ivone.
Ivone interrompe a médica, sentando-se.
IVONE
Rachel, querida.
A médica anota algo no papel.
IVONE(v.o.) Ivone é minha filha. Mas… normal.
Um “x” ao lado do nome da paciente Ivone Alcântara. (CONTINUA…)
IVONE(v.o.)
As pessoas confundem às vezes.
Ivone tentando ver o que a médica escreve, disfarça.
IVONE
Minha filha é muito mais nova.
MÉDICA(v.o.)
A senhora tem outros filhos?
IVONE
Não.
INT. CASA DE IVONE/PORTA DE ENTRADA — DIA
ATRAVÉS DO OLHO MÁGICO, André tocando impaciente a campainha.
ANDRÉ
Mamãe!
André toca mais uma vez a campainha ao que nos distanciamos deste envoltos no breu.
ANDRÉ
Ô, Dona Ivone!
O som da campainha funde-se à melodia da marchinha de carnaval “Cidade Maravilhosa” cantarolada por Ivone.
IVONE(v.o.)
Cidade Maravilhosa / Cheia / Rarara-rá
Do breu surge a maquete de um cérebro.
IVONE(v.o.)
Ci-da-de… rarara-rá… Rui? Não…
Após o cérebro ser tomado pelo breu, começamos a sair pelos cabelos negros de Ivone até estarmos fora de sua cabeça. A melodia cessa e voltamos a escutar o som ambiente de sua sala.
Ivone está de frente à porta fechada. Vira-se e grita.
IVONE
Já vai!
Ivone leva a mão à boca ainda intrigada até que se lembra.
IVONE
André! André...
INT. ASILO REFEITÓRIO — DIA
Paulo e Ivone dividem uma mesa no refeitório do asilo. Paulo, de óculos escuros, tem a mão estendida à Ivone, de cabelos um pouco mais curtos e pretos a pintar.
PAULO
Paulo.
IVONE
Prazer, Paulo, a gente já se conhece.
PAULO
De onde?
IVONE
Daqui do hotel.
Eles estão claramente no refeitório de um asilo. Paulo visivelmente constrangido.
PAULO
Desculpa, eu esqueci seu nome.
IVONE
Rachel.
Paulo titubeia, mas antes que ele possa falar, Ivone interrompe.
IVONE
Igual da tua sogra. Você falou.
PAULO
Ex-sogra.
INT. ASILO CONSULTÓRIO — DIA
As mãos da médica sobre o prontuário sobre um campo onde lê-se “divorciada”.
MÉDICA(v.o.)
E seu estado civil? Casada, solteira, viúva.
IVONE(v.o.) Viúva. As mãos da médica marcam um “x” ao lado do estado civil. Ivone ainda tentando ver o que a médica escreve. MÉDICA(v.o.) Tá certo, Dona Ivone… IVONE Preencho essa ficha todo dia e todo santo dia vocês erram meu nome. MÉDICA (v.o.) Desculpa, a gente já tá(…) Ivone resmunga para si. IVONE Hotel desse porte e não ter uma máquina pra bater essa ficha e não perder… INSERT: Foto de Copacabana em 1923. Prédio do Copacabana Palace em destaque. ANDRÉ(v.o.) In the late 20s the city of Rio became one of the most prolific(…) PAULO (v.o.) Então, pra onde você quer ir? IVONE(v.o.) Pro Copa (…) INT. ASILO VARANDA — DIA Paulo e Ivone sentados em um banco de mãos dadas. Paulo com um par de óculos escuros diferente. Ivone de cabelos curtos pintados de castanho claro. IVONE(cont’d) (…) pro baile do Copa. Eu toco lá. INT. ASILO REFEITÓRIO — DIA As mãos de Ivone lentamente tocam à mesa de toalha florida coberta com plástico como se esta fosse um piano. A melodia de Cidade Maravilhosa. INT. SALA DE AULA / ESCOLA BRITÂNICA — TARDE Alguns rostos de alunos da 5a série iluminados por celulares. ANDRÉ(v.o.) So for the next class I’d like you to develop a presentation about the Rio de Janeiro city 450th aniversary. André sob a imagem projetada do Rio antigo. ANDRÉ And I really hope you’re already googling it on your cellphone, Mateus. Mateus ao celular parece ignorar o professor. André liga a luz revelando a sala de aula.
ANDRÉ Class dismissed. Os alunos saem ao que o celular de André vibra sobre a mesa. Ele espera que os poucos alunos saiam para pegar seu celular. Ele apita. LETTERING: REUNIÃO / 20h / LAR DOS VELHOS
André grava um aúdio para Guilherme, seu irmão. ANDRÉ Eu também queria estar mal, mas sofrendo em euro, Guilherme. Sinto muito, você precisa voltar em algum momento e assumir isso. São seus pais também. Só mandar dinheiro é muito fácil, também quero, quem segura a merda toda sou
eu enquanto você brinca de fazer dancinha em Berlim. Vou tomar no meio do
seu cu, seu babaca! Filho da puta! Desgraçado! Auf widersen no meio
do olho do seu cu, seu MERDA!
INT. KARAOKÊ SUJO DO ARCO DO TELES — NOITE André está trajado de drag queen muito bem arrumada. Sua drag queen chama-se Audrey. Está visivelmente abalado. Será apenas personagem, cena ou seus reais sentimentos? Algumas poucas mesas de platéia, em uma delas, um homem grande olha com desdém para André vestido de Audrey. Minutos antes este homem havia chupado André no banheiro. Vemos trechos enquanto tocam os primeiros acordes de "Lama" de Núbia Laffayette. Enquanto isso o homem abraça sua companheira e faz alguma piada inaudível sobre Audrey e ela parece rir. As outras duas mesas parecem alheias à apresentação. André começa a cantar e a tela é dividida. Em metade dela Guilherme está em um ambiente super iluminado e limpo, ensaiando seu número de dança contemporânea. Não ouvimos o som da cena de Guilherme, mas a dança vai estranhamento casando-se com o música cantada por André/Audrey. O homem escroto do bar começa a falar mais alto e pega o celular para filmar a performance de Audrey. Sai de sua mesa e vai em direção ao pequeno palco falando merda. Audrey tenta manter a compostura até que o homem joga o pedestal de lado. A companheira do homem, da mesa, está visivelmente constrangida e parte para tentar impedí-lo. Neste momento, a música original na voz de Núbia Laffayette ganha volume e Audrey voa em cima do homem. Ele está visivelmente bêbado e apanha muito. As cenas, tanto da briga do karaokê, quanto do número de Guilherme misturam-se em câmera lenta como em um balé bizarro, porém complementar. Ao final da música, em um corte abrupto vemos Guilherme em um ponto e ônibus na Alemanha com fones de ouvido e chorando copiosamente. Seu ônibus chega e tampa a cena.
INSERT: Foto de um ponto de ônibus falso feito em um asilo da Alemanha. MEMBRO DO COMITÊ GESTOR #1 (v.o.) Pode passar, por favor. INT. ASILO REFEITÓRIO/AUDITÓRIO — NOITE Breu. Próximo slide da apresentação: uma planta humanizada de um ponto de ônibus idêntico ao da cena 1. O membro do comitê surge à frente da imagem, mas afasta-se à sua direita, permanecendo parcamente iluminado. MEMBRO DO COMITÊ GESTOR #1 Obrigado. E é com base nesse ponto de ônibus falso criado nesse asilo da Alemanha, que nós viemos propôr a cota extra para a criação de um
semelhante aqui nas dependências. Próximo, Marta, por favor. Breu. André sentado mexe ao celular durante a apresentação. Seu rosto tem um leve hetoma sob o olho em destaque. MEMBRO DO COMITÊ GESTOR #1(v.o.) A nossa esperança é que com isso, qualquer paciente que esteja sofrendo um surto ou qualquer tipo de desorientação possa ser encaminhado ou chegue até este ponto para esperar um ônibus que os levaria pra casa. No caso deste local na Alemanha, os episódios de reincidência em fuga caíram em mais da 65%.
Membro do comitê gestor #1 à frente de um slide listando os prós da implementação e alguns gráficos.
MEMBRO DO COMITÊ GESTOR #1
Bem, é isso. Obrigado, Marta.
As luzes acendem-se. Aplausos tímidos. André guarda o celular com o acender das luzes e começa a aplaudir sem jeito.
MEMBRO DO COMITÊ GESTOR #2 Obrigado, Jorge… Agradecendo aqui as considerações do… plano. Bem, eu acho que agora a gente pode partir pra votação desse tópico pra gente poder dar… prosseguimento aos outros pontos. É… Marta, por favor. Marta (65), de um púlpito, começa a leitura monocórdia dos nomes sem tirar os olhos do papel. MARTA Srª Alessandra Vieira, neta do residente José Vieira. ALESSANDRA(v.o.) Aprovo. MARTA Sr. André Alcântara Araújo, filho dos residentes Ivone Alcântara e Paulo André Araújo. Marta olha em direção à platéia. Muitas cadeiras vazias. André com as mãos levantadas. ANDRÉ Não aprovo.
A ladainha continua através da próxima cena, com todos aprovando a construção do ponto e vai sumindo aos poucos.
EXT. PONTO DE ÔNIBUS — MANHÃ Ivone e Paulo estão no ponto. Paulo está de óculos escuros. Ivone tem os cabelos ainda negros, porém um pouco mais curtos e brancos que à cena 2. Veste um vestido de festa vermelho. Esta é a primeira fuga do casal. Paulo está sentado e Ivone, um pouco impaciente, encontra-se em pé, olhando em direção ao ônibus que virá. Ivone se senta ao lado de Paulo, pondo seus óculos escuros.
PAULO E agora, a gente vai pra onde?
Câmera lenta. Ouvimos o refrão da música “Fuga nº 2” d’Os Mutantes em rotação lenta ao que nos afastamos do casal e revelamos o portão do asilo e dois enfermeiros de branco aproximando-se. LETTERING: “FUGA no 2” Letras brancas sobre a parede de pedra. BLACK.
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